É inegável a influência exercida por Augusto Comte na cultura do século XIX, pois a sua doutrina busca reconciliar Ciência e Filosofia. "Portanto, a originalidade de Comte será de indagar tanto a ciência quanto a filosofia sobre os princípios da reorganização social, que é o fim verdadeiro dos seus esforços" (LÉVY-BRUHL 5). Essa cultura assimila o positivismo do filósofo francês nas suas mais diversas manifestações, porque substitui a desordem encontrada nas ciências do espírito por um método capaz de oferecer uma resposta unívoca para as indagações essenciais dos homens. A literatura naturalista de Émile Zola é um reflexo dessa assimilação, porque deseja compreender as relações humanas através da universalidade da relação causa-efeito, tornando-as assim necessárias. De certo modo, esse desejo sustenta-se a partir da crença do escritor francês acerca da evolução ininterrupta do conhecimento humano; porém, essa evolução não se fundamenta tanto na esfera teológica quanto na metafísica, uma vez que ambas desconhecem o fato da essência da verdade localizar-se no plano material. Nota-se, portanto, quão Émile Zola radicaliza o postulado positivista que indica o predomínio da Ciência sobre as outras formas do conhecimento humano.
Emile Zola é forçado a realizar um "ajuste" necessário na sua literatura quando se utiliza da universalidade da relação causa-efeito, porque a mesma indica a inexistência da liberdade humana. Melhor: essa universalidade aponta um livre-arbítrio que é comandado por algum elemento exterior, tornando-o assim desprovido de toda e qualquer forma de autonomia. Esse "ajuste" é a defesa da exacerbada conexão que o homem mantém junto a sua estrutura biológica, pois está sujeito ao processo de evolução das espécies. Dito de um outro modo, essa conexão ressalta o impacto que o darwinismo teve sobre a literatura naturalista de Émile Zola, transformando-se dessa forma no leitmotiv do seu pensamento.
A esta altura irrompe a originalidade do escritor francês, que reside justamente na composição de uma literatura que esteja alheia as questões morais, ao menos no romance Thérèse Raquin. Para entender essa literatura, é preciso remontar a gênese da filosofia darwinista e especificar como a mesma representa a antítese da criação do homem a partir da Bíblia, uma vez que desqualifica a noção do pecado capital. Ou seja: é necessário recapitular o modo pelo qual Darwin explica a origem do homem através do primata, porque isto invalida a tese que ressalta a responsabilidade da historicidade homem perante a genealogia do mal. É mister reconhecer que essa tese deixa a entender que o mal originário não pode ser localizado na historicidade humana, tornando assim ininteligível qualquer discussão sobre a Moral, porque toda ação do homem é comandada por sua estrutura biológica.
Émile Zola defende que a impossibilidade de localizar o mal originário na historicidade humana é o fundamento da amoralidade em sua literatura. Dessa forma, o homem retratado em suas obras não pode ser responsabilizado perante o destino que lhe é apresentado, pois representa apenas a "peça corriqueira" de uma enorme engrenagem 1 . Portanto, a ação humana não é contingente, mas sim necessária, porque é o resultado de uma exigência imposta pelo meio circundante.
Thérèse Raquin - o romance incompreendido
O desdém do escritor francês face as críticas endereçadas ao romance Thérèse Raquin situa-se em dois planos. O primeiro deles é que a crítica especializada não compreendeu a mensagem transmitida por esse romance, caracterizando-o como uma "literatura imoral" 2 . De certo modo, falta-lhe os mecanismos necessários para entender como a análise científica empregada em Thérèse Raquin problematiza a questão referente a criação do homem. Ademais, também lhe falta a oportunidade de enxergar o fundamento das relações sociais descritas por Émile Zola neste romance, já que em nenhum momento essa crítica se pronunciou acerca da tentativa de encontrar um método universal para diagnosticar as ações humanas. O segundo deles é a incapacidade da maioria dos homens pertencentes ao século XIX de edificarem uma crítica legítima em relação ao romance Thérèse Raquin, visto que revelam ora um falso moralismo, ora um excessivo pudor literário:
"Não há, nesse nosso tempo, senão dois ou três homens capazes de ler, compreenderem e julgar um livro. Desses eu aceito receber lições, persuadido de que não falarão sem ter penetrado as minhas intenções e apreciado os resultados dos meus esforços. Eles evitariam pronunciar belas palavras vazias como moralidade e pudor literário; reconhecer-me-iam, nesse tempo de liberdade de arte, o direito de escolher os meus temas onde melhor me parecesse, exigindo de mim obras conscienciosas, por saberem que apenas a tolice fere a dignidade da letras. Certamente, a análise científica que tentei aplicar em Thérèse Raquin não os surpreenderia; encontrariam aí o método moderno, o instrumento de investigação universal de que o século se serve para tanta febre para perscrutar o futuro. Quaisquer que fossem as suas conclusões, admitiriam o meu ponto de partida, o estudo do temperamento e das modificações profundas do organismo sob a pressão do meio e das circunstâncias"
(ZOLA 10-11).
O romance Thérèse Raquin está a frente do seu tempo, porque defende o postulado darwinista acerca da criação do homem no Universo; porém, o mesmo fator que faz desse romance uma obra de vanguarda também pode servir de instrumento para uma crítica em relação a corrente literária iniciada por Émile Zola, porque atrela a tese da origem do homem com aquela que indica o mesmo como um simples resultado do meio ambiente, tornando-o um títere das circunstâncias. O resultado desse processo é a elaboração de uma literatura que torna o homem amoral 3 , uma vez que desqualifica o livre-arbítrio.
O problema da criação do homem é a "criação do problema": Existe a possibilidade de validar uma literatura que desconheça a moral, definindo o homem a partir da universalidade da relação causa-efeito? Essa resposta exige uma reflexão sobre a tese científica referente a criação do homem no Universo, detalhando como a mesma não consegue ultrapassar o limite imposto por si própria. Pode-se dizer que esse limite diz respeito a sua necessidade de fundamentar "o plano temporal através do tempo", pois do contrário não poderia se consolidar enquanto "instância absoluta para a compreensão da verdade" 4 .
Esta reflexão resume-se na seguinte pergunta: qual é o origem do ser que fundamentou o aparecimento do homem no Universo? De acordo com a teoria darwinista, nenhum ser é incriado, porque sempre há um outro que o antecedeu, e assim sucessivamente. Melhor: o aperfeiçoamento de uma determinada espécie origina outra, tornando ininterrupto o processo de criação do ser; porém, é preciso não identificar os termos "ininterrupto" e "eterno" na Ciência, já que a mesma trabalha em torno dos conceitos de tempo e espaço. Nota-se, enfim, que a teoria darwinista conduz a análise científica referente a criação do Universo.
Essa análise revela que o Universo surgiu de uma enorme explosão conhecida por Big Bang 5 , tornando inválida qualquer explicação que se apoie numa metafísica; entretanto, surge uma questão inevitável: o que existia antes do Big Bang, ou seja, antes da criação do tempo e do espaço? De acordo com a teoria científica Tempo de Planck, existia um curtíssimo espaço de tempo anterior ao surgimento do Universo, muito inferior ao conceito de "segundo". Nesse espaço ocorriam "forças desconhecidas" para a Ciência, tornando-a incapaz de conhecê-las neste momento. "Instante 0/10-43segundos: esse curto espaço de tempo é chamado Tempo de Planck, e aí entra em ação forças a nós ainda desconhecidas. As leis da física deixam de agir e não há muito que especular" (CARVALHO 1). Percebe-se, portanto, que a Ciência recorre a noção de tempo para explicar o surgimento do mesmo 6 , pois não aceita a hipótese de explicar o mundo sensível através do seu contrário.
Conclusão
Decerto, alguém pode argüir qual é a ligação entre a literatura naturalista de Émile Zola e o fenômeno do Big Bang? Ao nosso ver, ela diz respeito a dificuldade de fundamentar a natureza humana caso a questão da sua origem não seja discutida, que se confunde com o próprio surgimento do Universo 7 . É mister reconhecer que a solução dessa questão não se resume ao método universal baseado na relação causa-efeito, apesar deste possuir um coeficiente de legitimidade 8 . Ou seja: o propósito de Émile Zola em estudar a natureza do homem por meio da supressão do seu livre-arbítrio não consegue torná-lo um ser necessário, apesar de detalhar como o mesmo sofre a influência do meio em que habita.
Referências bibliográficas
BERTULANI, Carlos. O Big Bang e a evolução do Universo. Rio de Janeiro: Curso de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.
BRUHL, Lévy. La philosophie dáAuguste Comte. Paris: Librairie J. Vrin, s/data.
CARVALHO, Paulo H. Cronologia do Big Bang. São Paulo: www.pcarv.pro.br, 2005.
CRESSON, André. Darwin: sa vie, son ouvre et sa philosophie. Paris: Librairie Félix Alcan, 1899.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil - Parte 4 : Era realista e era de transição. São Paulo: Global Editora, 2004.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
SARTRE. J.-P. Crítica da razão dialética - Tomo I: Teoria dos conjuntos práticos. Tradução de Guilherme Rio de Janeiro: DPA Editora, 2002.
ZOLA, Émile. Thérèse Raquin. Tradução de Joaquin Pereira Neto. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.
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Convém observar que esta engrenagem é o meio ambiente onde vive o ser humano. Assim, não é equivocado assinalar que o homem é um produto do seu meio. Essa idéia de Émile Zola foi extraída do inglês Taine. "Outro relevo dessa convergência da biologia e das ciências sociais foi o relevo dado a estoutra idéia essencial do darwinismo, a de que ‘as circunstâncias externas determinam rigidamente a natureza dos seres vivos, inclusive o homem, e de que nem a vontade, nem a razão podem agir independentemente de seu condicionamento passado’. É a noção da onipotência do ambiente, do milieu de Comte e Taine (…) Esse foi, pois, o zeitgeist, o espírito da época, a concepção geral da vida que a dominou e lhe deu fisionomia espiritual típica: culto da ciência e do progresso, evolucionismo, liberalismo, iluminismo, determinismo, positivismo, contra-espiritualismo, naturalismo. Esse é o complexo espiritual que caracterizou a geração do ‘materialismo’. A infusão dessa concepção na literatura fez-se pelo Naturalismo ou, por outras palavras, o Naturalismo foi o movimento que deu forma literária àquelas teorias. No romance, Zola transformou as suas personagens em títeres, sem livre-arbítrio, a que um ambiente e uma força hereditária inelutavelmente imprimiam caráter, ações, destinos. Na crítica, Taine reduziu a interpretação das obras de arte à compreensão do meio, da raça, do momento em que se produziram" (COUTINHO 8). ↩
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"Era fácil, entretanto, compreender Thérèse Raquin, colocar-se no campo da observação e da análise, apresentar-me os meus verdadeiros erros, sem precisar recolher lama para me lançar ao rosto em nome da moral. A obra exigia apenas um pouco de inteligência e algumas idéias de conjunto de verdadeira crítica. A acusação de imoralidade em matéria de ciência não prova absolutamente nada. Não sei se o meu romance é imoral, confesso que jamais tive a preocupação de o fazer nem mais nem menos casto" (ZOLA 9). ↩
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"amoral (adj2g.) ; 1. Nem contrário nem conforme à moral. 2. A que falta moral ou que não tem senso dela" (FERREIRA 40). ↩
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É preciso assinalar que a redução da essência a aparência não qualifica a segunda como fundamento absoluto da verdade, uma vez que está sujeita ao processo de vicissitudes imposto pelo meio circundante; porém, isso não significa que o seu estudo fundamenta algo não-verdadeiro, visto que acontece justamente o contrário. ↩
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A descoberta de Edwin Hubble referente a evolução do Universo foi fundamental para o Big Bang, porque anunciou que as galáxias afastam-se com velocidades proporcionais às suas distâncias. Logo, pode-se retroceder ao instante infinitesimal que originou a criação do Universo e entender como o mesmo refletiu a união destas galáxias, ou seja, como uma enorme massa de matéria. ↩
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"Se a taxa de expansão do Universo for constante, concluímos que no instante 1/H os grupos de galáxias se encontravam todos localizados no mesmo ponto do espaço de densidade infinita. É esse acontecimento - origem do espaço e do tempo - que é habitualmente designado por Big Bang (ou Explosão Primordial)" (BERTULANI 2). ↩
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Esta afirmação resume-se na seguinte reflexão: a problematização da origem do homem não pode vir desacompanhada daquela que indaga sobre o aparecimento do ser. ↩
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"Já disse que aceitávamos, sem reservas, as teses expostas por Engels na carta que enviou a Marx: ‘São os próprias homens que fazem sua história, mas em determinado meio que os condiciona’" (SARTRE 73). ↩